Taumaturgos do Ordinário

Leonardo Cunha
2 min readAug 12, 2021

Sonolento, abro meus olhos. 5:20. Morosamente, me preparo para assumir meu turno no plantão.

"Piá, vai lá descansar, eu assumo aqui", rendo meu colega para seu tempo merecido de descanso (o plantão havia sido intenso).

Eu estava há um mês como fixo na sala vermelha. O medo talvez tenha se tornando em excesso de confiança. Mas, de qualquer modo, eu estava torcendo pelas próximas horas serem tranquilas. Ledo engano.

"Doutor, chegou uma parada!", me aciona o técnico de enfermagem. Corro.

Quem é ela? Ela tem asma! Começa a massagem! Prepara o tubo! Pega o acesso! Aspira a adrenalina! Chama o médico! (no caso, o outro) Checa o ritmo! Extubou! Pega outro! Nesse vai e vem, o pulso volta. Lá se vai meu primeiro atendimento de uma parada cardiorrespiratória como médico. Primeira vida salva? Por Deus talvez (com certeza, na verdade), afinal o que sabe um médico recém-formado?

Encontro as filhas de Dona Alice (nome fictício), explico a situação, um misto de pavor e alívio assume suas feições. A única coisa que consigo pensar: ela estava morta, mas a trouxemos de volta. Um milagre? Ou ciência? Os dois?

Jesus é universalmente conhecido por Seus feitos milagrosos. Curar um cego, ressuscitar um morto, limpar a lepra e por aí vai. Com o crescimento tecnológico, descobrimos muitas das táticas de Jesus. Teria Ele realizado uma curetagem na moça do fluxo anormal? Usado rifampicina para lepra? Ou imunobiológicos para mulher curvada sob si mesma?

"Eu não vou ao médico, Deus vai me curar". Frase comum no evangelicalismo brasileiro. Afinal, se não fizer cirilim salabim com pó de fada (ou óleo da unção), não pode vir da mão do Senhor.

Pressão caiu? Faz nora! Rebaixou? Intuba! Desvio à esquerda? Começa antibiótico! BAVT? Marca-passo! Gastrite? Omeprazol! "Tireóide"? Puran! Diabete? Insulina! Sofrimento fetal? Cesária! Etc etc etc etc etc...

Inúmeros são os feitos que a ciência concebeu. Para nós, da área da saúde, a rotina levou embora o pó de fada. Mas não a Mão do Senhor. Ela continua lá, sempre presente, até a consumação dos séculos. Quando, Em Cristo, veremos plenamente a realidade que Ele nós revelou: a saúde plena (a Hígia) e o fim de todas as doenças (a Panacéia). Esculápio, deus grego da Medicina, teria inveja.

Já estamos fazendo obras maiores como Ele nos prometeu. Ele nos guiou até aqui. Nos revelou as peças do quebra-cabeça pela Ciência. Fez médicos em taumaturgos acostumados com o extraordinário. Perdemos de vista o brilho das nossas (realizadas por meio de Cristo e para Glória de Deus) obras.

Dá próxima vez que receber uma prescrição de paracetamol para uma "virose", não desdenhe. É um ato profético, um milagre! E precisamos nos humilhar (médicos e pacientes) perante esses prodígios.

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Leonardo Cunha

Medicina Narrativa, Teologia Reformada e mais alguns Insights Aleatórios.