A Flor e o Aneurisma

Leonardo Cunha
3 min readOct 4, 2020

Final da tarde na Unidade Básica, já cansado, chamo dona Joana* para sua consulta de rotina.

Tristonha, logo começa a compartilhar suas muitas dores, emocionais e físicas, enquanto eu tento costurar as informações em uma linha lógica.

Muitas eram as queixas. A maioria estava além de minhas capacidades clínicas para resolver. Envolviam sua vida como um todo. Sinto aquela sensação de impotência. Minha presunção de poder diagnosticar e tratar todas as coisas entra em cheque.

Fico irritado. “Poxa, quantas queixas! Como irei resolver tudo isso em vinte minutos?”

Em meio a tantos sofrimentos surge o “inchume da barriga”.

“Poxa, não deve ser nada demais”, penso comigo. “Mas vou dar uma palpada na barriga, né”

Inspeção, abdome plano. Ausculta, ruídos hidroaéreos presentes. Percussão, dentro do esperado.

Palpação, “Epa, tem algo aqui…”

Encontro uma massa no meio da barriga, mais à esquerda. Quando repouso minha mão sobre a massa, sinto como se fosse o bater de um coração.

TUM TUM TUM… Aneurisma! (Condição clínica que acontece quando as paredes de nossas artérias se enfraquecem e pressão do sangue as faz dilatar e afinar, como quando uma criança sopra o látex de um balão)

“Preciso correr para encaminhar para cirurgia vascular! Vamos fazer uma tomografia!”, planejo comigo mesmo.

“Dona Joana, vou precisar encaminhar você, vai precisar operar”

“Poxa, mas onde vai ser”

“No hospital X”

“Naquela lonjura? Não pode ser mais perto?”

“Infelizmente não, lá é nossa referência, mas calma antes da cirurgia tem exames para fazer, tem que passar com especialista, vamos um passo de cada vez”, ela concorda, faço os papéis, oriento sinais de alarme e concluímos a consulta.

Alguns dias se passam, quando, em outra consulta de rotina, a paciente me questiona:

“Doutor, conhece a dona Jo? Acho que passou contigo semana passada”

Vejo minhas anotações para conferir o caso.

“É claro! Por quê?”

“Ela faleceu na tempestade que deu ontem!”

Interrompo a consulta para comentar a notícia com a agente comunitária responsável pelo endereço da dona Joana.

“Ah é! Falei com ela há 2 dias!”, tão espantada quanto eu.

“O aneurisma rompeu?”, penso comigo. “Tínhamos acabado de descobrir!”, lamento.

Certo do rompimento do aneurisma, descubro posteriormente que dona Joana foi encontrada morta próxima a uma flor que ela não permitia mais ninguém cuidar. Durante a tempestade, dona Joana provavelmente sofreu uma queda ao tentar proteger a flor que tanto amava. O aneurisma influenciou? Talvez não. Talvez meu diagnóstico fosse apenas uma medalha ao meu conhecimento, mas não gerou mudanças reais na vida de dona Joana.

É fácil subestimar o sofrimento do outro. Quando trabalhamos em meio ao sofrimento, podemos nos tornar endurecidos. Afinal, é apenas mais um paciente com muitas queixas.

Perdemos de vista a imago Dei, a imagem de Deus, em cada ser humano. Ignoramos a complexidade e singularidade que forma cada um de nós. Seres que amam e são amados. Seres que sofrem e fazem sofrer.

Para dona Joana, talvez meu diagnóstico fosse apenas mais um sofrimento, mais uma investigação, mais um medo de morrer em uma mesa cirúrgica.

Para literatura médica, talvez dona Joana seja apenas mais um caso de aneurisma de aorta abdominal.

Para flor, talvez dona Joana fosse o cuidado e a provisão de Deus materializados.

Para mim, talvez dona Joana seja uma lição de humildade. Não, dona Joana com certeza foi uma lição de humildade para mim.

Descanse em paz, dona Joana. A família e amigos, meus sentimentos e orações.

*Nome fictício por questão de sigilo médico.

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Leonardo Cunha

Medicina Narrativa, Teologia Reformada e mais alguns Insights Aleatórios.